Brasília – Antes mesmo da guerra da Rússia contra a Ucrânia, países como a Espanha, por exemplo, já registravam aumentos sucessivos nas contas de energia elétrica. Com o conflito no Leste, essa discussão ganha cada vez mais importância, uma vez que, em grande medida, a Europa é dependente do gás importado da Rússia. Para tratar desse assunto, o InfoRel ouviu Eduardo Caetano de Sousa, especialista em geopolítica energética e membro da direção do EuroDefense-Portugal.
Segundo ele, “de uma forma geral os Estados europeus, a começar pela Alemanha, e a própria Comissão Europeia, relegaram de alguma forma para segundo plano a importância estratégica da Segurança Energética. Transição Energética quer dizer também, e necessariamente, Segurança Energética”, afirmou. Acompanhe a entrevista:
A guerra da Rússia contra a Ucrânia obrigará a Europa a repensar a sua política energética, especialmente em termos de redução da dependência russa? Isso é viável?
Não direi que a União Europeia vai agora repensar a sua política energética. Irá com certeza alterar e adaptar algumas das suas estratégias energéticas, decorrente da invasão perpetrada pela Rússia à Ucrânia. E claro, terá de encontrar um cenário viável face às atuais circunstâncias, em especial para os países europeus do Norte e Leste da Europa, mais dependentes dos combustíveis fósseis russos. A Europa depende em cerca de 90% das importações de gás natural, sendo mais de 40% da Rússia, 27% em petróleo russo e 46% em carvão. A Europa é na verdade o grande mercado energético (em especial de combustíveis fósseis) da Federação Russa. E as alterações que desta crise irão decorrer, implicarão muitas dificuldades aos Estados, custos bastante onerosos nos combustíveis (já estão a acontecer) e adaptação de novos meios e de novas capacidades, e que exigem tempo. Mas a resposta a uma agressão grave como esta a um Estado soberano, não deixaria de implicar múltiplas e diferenciadas respostas, mesmo no campo energético, como bem refere.
E o que dizer das opções feitas pela União Europeia no campo energético?
A UE tem pretendido conciliar o aumento da ambição climática, a prosperidade económica e o crescimento sustentável ao longo dos últimos anos (The European Green Deal). Contudo os “choques e as vulnerabilidades energéticas” na Europa são um fator real muito condicionante. A diversidade do mix energético dos seus Estados-membros, o potencial econômico crescente do mercado asiático, a política de importação europeia de gás natural e petróleo e a dependência vertiginosa dos gasodutos russos, assim como a dependência quase total em matérias-primas e minerais estratégicos da China, condicionam e muito as políticas energéticas a prazo da UE. Para já e numa primeira fase, a UE terá de encontrar alternativas faseadas aos cerca de 200 bcm que importa anualmente de gás natural russo e que têm um impacto muito significativo (isto na hipótese de todos os gasodutos russos deixarem de fornecer gás à Europa). Até porque existem muitos países expostos diretamente a esta disrupção não prevista há semanas atrás (nomeadamente a Alemanha e outros Estados da Europa Central e do Leste como vimos).
Existem alternativas viáveis?
As alternativas existem mas não em quantidade suficiente e no tempo necessário. Aqui sim, importa reformular políticas energéticas e implementar novos modelos já previstos em cenários a curto e médio prazo, nomeadamente aqueles que passam pelo aumento das energias renováveis e pela capacitação de outras fontes energéticas. Falamos numa primeira fase de acorrer a medidas de urgência. Lembro que ainda estamos no Inverno, mas urge começar a preparar os próximos tempos em termos de gas storage. Estas medidas terão de passar pela reorganização dos níveis de storage existente (que se encontravam em níveis baixos), pelo reforço adicional de produção existente na Europa de gás natural (Noruega, e mesmo Países Baixos), do aumento das importações do Norte de África (Argélia) e África Ocidental, e do Azerbaijão (SGC) e claro da importância estratégica da importação em larga escala do GNL (EUA, Catar, Egito, Nigéria, Canadá e outros grandes exportadores mundiais). O GNL tem um alcance geopolítico extraordinário e irá certamente ser posto à prova neste esforço de minorar as dificuldades de GN na Europa em tempo curto e razoável.
Diante deste cenário, com quem a Europa poderá contar?
Poderá contar também, a médio prazo, caso seja indispensável, com gás proveniente das reservas de gás do Japão, Coreia do Sul, Índia e Austrália e até mesmo da China. A própria questão do futuro, agora muito sombrio do Nord Stream 2, será um ponto de viragem nesta estratégia energética da Europa. Poderá mesmo este pipeline de referência do Báltico, nunca mais ver a luz do dia. Convém também referir que a Rússia terá ela própria de repensar a sua estratégia energética, já que metade das suas exportações de petróleo são para a Europa, assim como mais de 75% do GN por pipeline e cerca de 40% do GNL, que representam uma enorme fatia orçamentária do seu PIB, que se prevê possa ser muito afetado pela envolvência direta das sanções financeiras e económicas ocidentais. Os investimentos futuros nos projetos do Ártico podem ser igualmente muito condicionados. Finalmente dizer que, a Europa deverá contar sempre com o apoio dos EUA e do RU no conjunto das ações a realizar neste âmbito.
O que a Europa terá de fazer, então?
Face aos novos desafios e ameaças a União Europeia deverá procurar incentivar uma “grande estratégia” energética. Já percebeu que o espaço em que está inserida e onde se move precisa de ser dotado de uma estratégia mobilizadora com objetivos comuns e partilhados pelos seus Estados-membros. Os grandes desafios para as próximas décadas no campo energético estão aí: uma transição energética agora bem mais acelerada, acompanhada de uma transição digital, económica e social. As ameaças várias que sobrevoam a sociedade, a política internacional e a própria segurança e defesa na Europa, obrigam a acelerar esse propósito. A Comissão Europeia lançou esta semana o programa de ação “REPowerEU: Joint European Action for more affordable, secure and sustainable energy”, que pretende ser uma resposta aos desafios energéticos que se colocam ao conjunto dos Estados-membros, e tem como prioridade reduzir a dependência energética da Europa dos combustíveis fósseis da Rússia. Mas também dar um novo alento e impulso às políticas energéticas do “The European Green Deal”, juntando assim à transição energética e ao processo de descarbonização em curso, a necessidade de uma maior independência energética ao longo dos próximos anos.
Há uma grande controvérsia acerca da eficácia das sanções económicas adotadas contra a Rússia. Asfixiar economicamente seria a alternativa à uma guerra aberta entre Moscou e a Europa?
Nesta altura tudo ainda é muito incerto e confuso. No espaço de dias a geopolítica mundial sofreu alterações inimagináveis. O mundo e o sistema internacional não serão iguais a partir de agora. Uma nova corrida aos armamentos na Europa pode estar em causa, com implicações noutros continentes. O espectro do nuclear pode voltar de forma mais ou menos explícita, como aliás já o fez o presidente russo Putin. A Europa que não é uma potência militar, usou das capacidades que dispõe: o seu poder económico e financeiro. As medidas económicas colocadas em prática pela UE contra interesses russos são já de uma envergadura que, certamente irão estrangular a prazo qualquer desenvolvimento económico sustentado da Federação Russa em convergência com as medidas bastante reforçadas tomadas também pelos EUA e outros países ocidentais, nomeadamente com o fim das importações petrolíferas russas pelos EUA .
Mas veremos como vai evoluir a situação. Em boa razão estas medidas são uma grande confrontação económica declarada aos interesse da Rússia e sem fim à vista. Espera-se no entanto, esperamos todos, que possam contribuir para um novo ressurgir da paz efetiva no continente europeu e num tempo o mais breve possível.
O senhor coincide com a opinião de vários analistas de que Putin tira vantagem da falta de uma liderança ocidental forte? A saída de cena de Angela Merkel e a eleição de Biden nos EUA, teria alguma relação com isso?
A pergunta é muito interessante. Provavelmente no cenário estratégico inicial montado pelo presidente Putin, uma das premissas base seria a falta de união dos países europeus, a dificuldade de uma concertação política comum, nomeadamente no campo da segurança e mesmo da defesa entre os Estados-membros. Também uma certa ausência da Alemanha nas grandes decisões da política internacional, ainda mais com um novo governo por esta altura à procura de um rumo. E ainda encontrar uma política diversa e pouco coordenada (pós-Brexit) entre o RU e a UE (o que não aconteceu). Ou seja, em termos de resultado final, uma repetição do cenário da anexação da Crimeia em 2014, onde apesar de condenações mais ou menos veementes e outras sanções, nada resultou que tenha atemorizado a estratégia de conquista territorial da Rússia e a consecução direta dos seus objetivos.
E o papel dos EUA, como fica?
Os próprios EUA não estarão isentos deste «adormecimento internacional na Europa» ao terem-se virado prioritária e estrategicamente para o Pacífico. Mas o caso agora assume proporções diferenciadas e de muito maior gravidade e que afetam diretamente a Europa e a própria OTAN. Estamos a falar da invasão de um Estado soberano, em clara violação de todas as regras do direito internacional. O resultado e para voltar à pergunta, teve um efeito contrário: verificou-se a união dos Estados-membros, como nunca se tinha registrado antes, e uma vontade de rapidamente a Europa avançar para uma segurança e defesa própria, um projeto e um modelo que leva décadas de discussão sem conclusões ou avanços. A posição dos EUA na sua relação com a Europa será também um fator determinante neste processo, até porque Biden apresenta políticas e estratégias diferenciadas da anterior administração, e nas quais as políticas do Atlântico e da OTAN ganharam de novo um elemento de reforço e impulso muito determinantes na atual conjuntura. A própria Alemanha em face a esta agressão a um Estado soberano na Europa, assumiu alterações na sua política de defesa, incluindo o aumento muito significativo de despesa orçamentária dedicada à área de armamento e defesa. Como disse anteriormente, tudo mudou no espaço de uma semana.
InfoRel: Por Marcelo Rech
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