O Hamas e seu financiamento através de criptoativos

por | out 30, 2023 | 14h

Jorge M. Lasmar

A Faixa de Gaza vive em uma situação econômica bastante precária já a muito tempo. A região, que possui uma população em torno de 2 milhões de habitantes, tem uma área equivalente a 25% da cidade de São Paulo sendo uma das regiões mais densamente povoadas do mundo. A região é completamente cercada por uma barreira com 7 pontos de passagem controlados por Israel e pelo Egito.

Desde 2006, a região sofre de um forte bloqueio por parte do Egito e Israel. O bloqueio continuado tem restringido a entrada e saída de bens, pessoas e mercadorias da região. Como resultado, a área vive uma séria situação de crise humanitária. Praticamente metade da população de palestinos de Gaza precisam da ajuda internacional diariamente para sobreviver. A entrada e distribuição da ajuda internacional em Gaza depende de permissão de Israel e atinge a população através de ações da Autoridade Palestina, das agências da ONU ou do próprio Hamas.

Além disso, o Hamas (ou o seu braço armado em alguns casos) é designado como uma entidade terrorista por vários países. Assim, o grupo não pode receber assistência oficial dos Estados Unidos e da União Europeia que apoiam a OLP na Cisjordânia. Nesse contexto, como o Hamas gera a sua receita?

Uma das formas é através da utilização de túneis cavados até o Egito. Através desses túneis, suprimentos essenciais, mercadorias e mesmo armas e dinheiro chegam até Gaza. Todas as mercadorias que entram dessa maneira na região são controladas e tributadas pelo Hamas. De fato, essa se tornou uma importante fonte de renda para o grupo. No entanto, o presidente Abdel Fatah al-Sisi do Egito se opôs ao Hamas e, a partir de 2013, vários túneis foram fechados. Estima-se que até 2021, o Hamas arrecadava em torno de US$ 12 milhões por mês em impostos sobre as importações egípcias que passaram por esses túneis.

Outra fonte de financiamento é através da ajuda financeira de alguns estados. Há a suspeita de que o Irã – que é um apoiador do Hamas – vem contribuindo com fundos, armas e treinamento para o grupo. Embora tenha havido uma desavença entre o Irã e o Hamas devido ao envolvimento em lados opostos na guerra civil da Síria, estima-se que o Irã forneça atualmente em torno de US$ 100 milhões anualmente ao Hamas, PIJ e outros grupos palestinos designados como terroristas pelos EUA. Suspeita-se que outros países como a Turquia e o Qatar também têm apoiado o Hamas seja financeiramente ou seja através de outras formas de assistência.

Também há a ajuda privada. Palestinos expatriados e doadores privados em diversos países enviam ativos ao Hamas com algumas organizações no Ocidente atuando para redirecionar os ativos para organizações de serviços sociais apoiados pelo grupo. Em vários casos, as entidades ou pessoas, bem como as instituições financeiras envolvidas nessas transferências, acabam por sofrer a aplicação de sanções e ações de congelamento de ativos por financiamento do terrorismo pelo Tesouro dos EUA ou dos países da União Europeia.

Hamas e o uso de Crytpoativos

Um outro importante ponto de atenção é o uso de criptoativos. Apesar do uso de criptomoedas e outros ativos virtuais para arrecadação de fundos e outras atividades de financiamento do terrorismo ainda ser relativamente baixo em comparação com os meios tradicionais, as criptomoedas têm sido um recurso crescentemente utilizado para o financiamento de entidades e países sancionados. Assim, espera-se que o interesse do Hamas pela utilização de criptoativos para o seu financiamento aumente nos próximos dias e meses.

De fato, o Hamas foi uma das primeiras organizações designadas como terroristas a usarem criptoativos. Desde 2019, o braço militar do Hamas Izz-Al Din-Al Qassam Brigades tem lançado campanhas de financiamento de suas atividades militares com o uso de criptoativos. O Hamas testou solicitar Bitcoins através do Telegram e diretamente em seu site alqassam.net. De lá para cá, vimos uma rápida evolução e incremento da sofisticação das campanhas de financiamento do Hamas via criptoativos.

Segundo a Chainanalysis, podemos claramente identificar três fases nas sub-campanhas de financiamento do Hamas por criptoativos.

Primeira Fase:

Inicialmente, sites ligados à Al Qassam Brigades começaram a divulgar um pedido de doação disponibilizando um QR code ligado a um endereço único de Bitcoin. Contudo, como o endereço estava ligado a uma Exchange nos Estados Unidos, as autoridades estadunidenses rapidamente congelaram as contas e investigaram os indivíduos envolvidos;

Segunda Fase:

A partir de então, o Hamas começou a divulgar endereços ligados a carteiras privadas que não estavam sob custódia de exchanges. Apesar disso, as autoridades ainda conseguiram mapear as transações através de análises de blockchain;

Terceira Fase:

Finalmente, o grupo se sofisticou bastante incorporando carteiras e meios de pagamentos em seus próprios sites. Dessa forma, o Hamas passou a conseguir criar um endereço único para cada doador e diversificar as transações com outros criptoativos além de Bitcoins. O grupo chegou a recomendar que seus apoiadores não fizessem doações em Bitcoins para evitar serem comprometidos. Nessa fase, o grupo também experimentou com as finanças descentralizadas (DeFi) ensinando a seus doadores como criarem carteiras privadas para fazer as doações. Foram divulgados também vídeos detalhados ensinando como se utilizar de doleiros (operadores de e-Hawala) para fazer as transações ou como manter a anonimidade através do uso de redes públicas de wi-fi e listas de carteiras e exchanges recomendadas.

De lá para cá, os EUA anunciaram o congelamento de 150 contas ligadas a pelo menos três grandes campanhas globais de financiamento das Izz-Al Din-Al Qassam Brigades. As campanhas se utilizaram de ciber-ferramentas sofisticadas. As autoridades de Israel também já fecharam dezenas de endereços de criptoativos ligados ao Hamas com um volume de dezenas de milhares de dólares. As apreensões têm demonstrado uma crescente sofisticação técnica, com o uso de vários canais, chains e criptoativos diferentes para evitar a detecção. Atualmente, o grupo tem preferido o uso de canais de pagamentos em seus websites ao invés do compartilhamento de endereços de criptoativos.

Segundo a TRM Labs, desde o início das atividades, o grupo GAZANOW – que apoia ativamente o Hamas – tem solicitado doações em um endereço de criptoativos. O endereço já recebeu em torno de US$ 5.000 desde os ataques de sábado, 7 de outubro. Desde então o grupo passou a contactar seus apoiadores através de mensagens diretas pelo Instagram, que interrompeu a campanha. Outras campanhas como “Tofan al-Aqsa” têm solicitado doações via X (antigo Twitter). As campanhas até agora têm obtido poucos recursos, mas levantam um sinal de alerta. Israel anunciou em 10 de outubro o congelamento de contas de criptoativos pertencentes ao Hamas.

Outros grupos que apoiam o ataque a Israel também têm lançado campanhas de financiamento através de criptoativos. Em junho desse ano, o National Bureau for Counter Terror Financing (NBCTF) de Israel congelou 1,7 milhões de Dólares em criptoativos do Hizbollah. Mais de 40 endereços de USDT na rede TRON ligados ao Hezbollah foram alvo de operações do NBCTF. Os endereços estavam ligados a entidades e exchanges no Iraque, Síria e na Faixa de Gaza.

De um modo geral, o padrão de financiamento se inicia com a transferência dos facilitadores financeiros para serviços de Hawala e corretores OTC (Over the Counter, ou seja, pessoas ou firmas que compram e vendem os ativos virtuais de suas próprias contas ou em nome de seus clientes) que por sua vez transferem para endereços controlados pelo Hizbollah em exchanges. Frequentemente os mesmos facilitadores prestam serviços para vários grupos terroristas. Essa é uma técnica igualmente utilizada por outros grupos como a Palestinian Islamic Jihad (PIJ) que inclusive declarou sua participação na tomada de reféns em Israel.

Nesse sentido, na semana passada, o Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros (OFAC) do Departamento do Tesouro dos EUA impôs sanções a dez membros, agentes e facilitadores financeiros do Hamas. As sanções também foram direcionadas para duas empresas de serviços monetários (MSB) com sede em Gaza, a Buy Cash Money e a Money Transfer Company. Segundo a OFAC, a Buy Cash tem sido usada para transferir fundos por afiliados de grupos terroristas que incluem o Hamas, a Al-Qaeda e o Estado Islâmico (ISIS), além de facilitar a arrecadação de fundos em criptomoedas para o Hamas.

Por isso, é essencial que as unidades de inteligência financeiras compartilhem com o setor privado os indicadores de risco, tipologias, detalhamento e listas das contas envolvidas bem como dos redflags associados às atividades de financiamento do terrorismo pelo HAMAS. É ainda mais importante que o setor privado esteja atento ao monitoramento de suas transações para se prevenir o financiamento do terrorismo.

Jorge M. Lasmaré professor do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da PUC-MG e Diretor de Pós-Graduação da Faculdade de Direito Milton Campos. Possui doutorado em Relações Internacionais pela London School of Economics and Political Science, além de outros cursos especializados como o de Finanças Islâmicas pela Universidade de Durham. É membro Comissão de Elaboração da Certificação Profissional em Prevenção à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo e Coordenador Regional (Brasil) da Terrorism Research Network, e membro do Conselho Consultivo do Instituto de Prevenção e Combate à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo (IPLD).